Sim, esse é o título. E é o meu desejo também.
São anos militando, posso dizer que se completaram 16 anos de militância. Não exatamente, porque faz alguns anos que eu decidi não mais militar, mas seguir como um ativista. As duas coisas têm diferença. Não entrarei nos pormenores, mas a luta era bastante solitária, esgotante e, dessa forma, é adoecedor. Fico perdido na contagem de todas as vezes que adoeci e que, inclusive, tive um burnout que quase custou a minha vida algumas vezes. Com certeza, não foram as primeiras vezes em que minha vida esteve em risco – essa luta contra a morte data desde a infância. Acho que todos nós lutamos pela vida; alguns mais, outros menos, mas todo dia é um dia a mais.
Houve um momento em que precisei optar por lutar só pelos meus semelhantes, o que tornou o trabalho menos exaustivo. Ainda assim, a gente encontra desafios, por exemplo, pessoas que não conseguem ver a minha humanidade e confundem o meu papel com o do Estado. Tem pessoas que acham que é uma obrigação ou uma responsabilidade minha fazer qualquer coisa por elas, quando eu sou só uma pessoa comum como qualquer outra e que também precisa de suporte. A diferença é que eu tendo a me responsabilizar muito por tudo o que eu quero e preciso. Não acredito que o outro deva agir como eu e pelas mesmas razões, as quais não serão explicitadas – sou muito privado e discreto, como podem perceber -, foi só um breve comentário sobre como prefiro lidar com as coisas. De qualquer modo, eu cansei de não ser visto como gente, seja pelo mundo lá fora, seja pelos meus próprios semelhantes. Não quero generalizar, porque encontrei muitas pessoas incríveis nessa caminhada. Mas eu preciso focar no meu ganha pão e nos meus sonhos. Preciso correr atrás das coisas que eu acabei negligenciando em prol do coletivo. Foquei demais no coletivo e abdiquei de mim, fiz errado, e foi onde eu mais adoeci. Não fui ensinado a pensar em mim e a me entender, isso foi algo que tive que descobrir durante o caminho. Foi difícil.
Hoje, não quero mais discutir com a oposição, com o opressor. Não quero mudar ninguém, não quero fazer com que o outro mude de ideia, salvo aqueles que tenham o desejo de mudar e que gostariam de trocar uma ideia. Não quero mais fazer pelo meu próximo tão diretamente como estava fazendo; quero aliviar a minha barra. Que alívio! Enquanto militante, comumente eu era incentivado a galgar patamares maiores, participar de eventos e organizações nacional e internacionalmente conhecidas. Ambição é uma coisa tão relativa e maleável, que eu não concordo com a ambição neoliberal e capitalista. Não sou competitivo nesse sentido, tenho certeza que tem espaço para todo mundo nesse vasto mundo. Apesar disso, fui incentivado a querer muito mais e a conquistar grandes coisas, como se eu tivesse que ser uma referência a todas as outras pessoas trans – eu não podia parar e fui até mesmo punido e rechaçado quando tirei férias, há alguns anos, no dia nacional da visibilidade trans. Pasmem: fazia seis anos que eu não tirava férias e não podia estar na companhia da minha mãe, visto que o aniversário dela é dia 29 de janeiro, justamente no dia da visibilidade (irônico, né?), mas eu fui rechaçado por ter recusado fazer parte de um evento que eu geralmente era convidado a estar. Fui criticado por pessoa dos movimentos sociais que se dizem aliados. Que ousado eu fui em negar porque pretendia viajar! Que maneira curiosa de as pessoas se aliarem a nós, não acham? Mais uma amostra de que somos destituídos de nossa humanidade não somente enquanto pessoas trans, mas também responsabilizados por coisas as quais não são a nossa obrigação. É o mesmo que dizer que eu tenho que resolver a transfobia do mundo e que tem pessoa trans sofrendo; logo, se eu não participar ou não ser ativista/militante por um minuto, as coisas vão ruir e será culpa minha. Não sei quando passei a ser o Estado e toda a sua dimensão!
Somos limitados e devemos reconhecer isso.
Nem comentarei sobre os eventos em que nos convidam, não nos pagam, não nos dão um copo de água e acham um problema pagar o nosso transporte – detalhe: convidaram o doutor fulano da universidade de não sei onde, “especialista em trans”, cisgênero, visão deturpada e mítica de saúde trans, foi pago para palestrar no evento, inclusive suas passagens e estadia.
São as tantas ingratidões tanto entre os meus quanto entre os outros que foram me exaurindo. Não tenho grandes expectativas, apenas respeito a minha humanidade. Não é pedir muito.
Nesse ano, tive que aceitar e reconhecer o meu processo de luto de que acabou para mim, no momento, e que nessas condições não tenho mais como continuar fazendo esse trabalho. Preciso limitar ainda mais a forma como eu me engajo. Acho que “afunilar” é a designação mais adequada. Sem mais fazer parte das disputas políticas batendo na porta do gestor; sem mais dar palestras de graça e nunca ser empregado no mercado formal; sem mais participações em ongs, coletivos, instituições ou entidades de classe ou categoria profissional. Eu não preciso mais estar nas grandes coisas e nos grandes cenários. Posso fazer muito mais escrevendo, fazendo a minha pesquisa, meus atendimentos e dando as minhas aulas. Sendo eu por onde passo. Já é coisa o suficiente. Visibilidade é muito importante, mas não precisamos ser visíveis a todos ou a uma grande quantidade de pessoas. Toda trajetória é um testemunho: vai testemunhar quem tiver que testemunhar. É preciso reavaliar os valores e designar o que realmente é importante para a gente.
Posso soar contraditório, mas não gosto de ser visto. Não gosto de socializar, menos ainda de fazer parte dos jogos das relações politiqueiras das instituições. Não gosto de fazer parte dos cenários montados. Não sou o procurado para amizade, nem trabalho e nem qualquer outra coisa – sou chamado para apagar incêndios, para cumprir com papéis que não são meus e para ajudar pessoas que esporadicamente acionam o meu contato. É bem como se eu fosse um utensílio de cozinha pendurado na parede ou guardado na gaveta, à prontidão quando necessitado. Acontece que deixei de estar à disposição tem bastante tempo. Além disso, não sou necessário. Nada é necessário e nada é urgente nesse mundo. Não “tenho que” nada. Como sempre falo para as pessoas que atendo e para quem convive comigo, não tem nada mais revolucionário que ser inútil. O inútil é muito útil nos dias de hoje, superacelerados. Quero dispor de um tempo para escrever só sobre isso em uma próxima postagem nesse blog.
Não quero mais ser o militante, nem o ativista de outrora.
Não sou escritor, nem sei ser escritor. Seria pretensioso demais.
Não sou útil, bem pelo contrário. Deve ser por isso que o sistema me descarta.
Não sou acadêmico, nem sei ser pós-graduando, embora esteja terminando meu doutorado.
Será que sou psicólogo? Depende de quem vê.
Eu sou muitas outras coisas que o mundo material não contempla. De repente, vou ser ativista de blog, de escrita (mal-feita) de artigo científico. Não gosto de aparecer em vídeos e não quero lucrarr com esse espaço. Tem coisa que não se monetiza. Assim como o amanhã de Ailton Krenak, eu também não estou à venda.
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